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O meu bairro – tão perto e tão longe

May 28, 2020

À medida que nos libertamos paulatinamente dos constrangimentos decorrentes da pandemia e do confinamento forçado, regressando ao que alguns já denominam de novo normal, somos confrontados com uma pergunta incontornável: vai ficar tudo como era antes?

Realisticamente, o “desconfinamento” progressivo será sempre acompanhado de um conjunto de regras de saúde pública que impedem o regresso ao passado pré-covid-19, mas tal não implica obrigatoriamente mudanças estruturais de médio/longo prazo no nosso modelo de sociedade, na forma como nos organizamos e vivemos, ou nos nossos padrões e comportamentos individuais.

Olhando para o panorama nacional e internacional, podemos já identificar algumas linhas de mudança que começam a despontar, como o reforço das condições para a utilização de modos de transporte suaves (como atesta o anúncio feito por várias cidades de fortes investimentos nas condições infraestruturais para que tal aconteça, como Londres ou Paris) ou o reforço da ocupação do espaço público com esplanadas e espaços de lazer, visando assegurar um cumprimento mais fácil do distanciamento social, sem comprometer a viabilidade económica do negócio, através da redução da burocracia do licenciamento e isenção ou redução de taxas (ver o exemplo de Vilnius). Também a saúde pública é confrontada com novos desafios, como seja usar ou não as atuais capacidades de “sensorização” de pessoas para melhor gerir a pandemia, desde o seguimento de infetados ao trace back de contactos dos novos casos de infeção, originando fortes discussões sobre o direito à privacidade numa visão do mundo utópica para uns e distópica para outros.

Curiosamente, todas estas “mudanças” partilham da característica de serem reclamadas pela sociedade, mas imputada a responsabilidade pela sua concretização a quem governa o país, as regiões ou as cidades.

Assim, gostaria de olhar para outra dimensão. A dimensão da inteligência coletiva que envolve a capacidade de cada um de nós ativamente contribuir de forma colaborativa para a construção da mudança. À semelhança do que aconteceu durante a pandemia com iniciativas como o Tech4Covid que, à data de hoje, reúne mais de cinco mil pessoas, entre engenheiros, cientistas, designers, marketeers, profissionais de saúde, etc. Estes voluntários criaram novos produtos e serviços coletivamente – 34 projetos ativos neste momento, para ser mais exato –, ficando em aberto se conseguimos tirar partido da inteligência coletiva para, aproveitando todas as dificuldades que a pandemia gerou, retirar daí algo positivo para cada um de nós, para a sociedade em geral e para o planeta no seu todo.

Falo de algo que, apesar de estar tão perto, foi ficando cada vez mais longe até hoje ser, em muitos casos, apenas o vestígio de um passado distante que parecia impossível de recuperar. Falo dos bairros, das comunidades de segurança e confiança que em tempos existiram nas cidades e vilas do nosso país e que, progressivamente, desapareceram, levando neste processo o comércio tradicional, os artesãos, a alma e identidade local.

No entanto, e no contexto da pandemia, fomos surpreendidos pela capacidade destas comunidades locais, do comércio de proximidade, dos bairros tirarem partido da tecnologia e, passando por um processo de transformação digital instantânea, colocarem em marcha uma infinidade de soluções capazes de dar resposta às famílias que repentinamente se viram fechadas em casa, mas que puderam assim continuar a usufruir dos produtos e serviços indispensáveis para o seu dia-a-dia.

Combinando comércio eletrónico com páginas no Facebook, grupos no WhatsApp e perfis no Instagram, entre outros, a necessidade aguçou o engenho e foi-nos possível receber em casa o peixe da Madalena e a fruta da Olinda do Mercado 31 de Janeiro, encomendar o almoço para take away na Tasquinha das Flores, cuja ementa os clientes mais fiéis recebem diariamente por e-mail, receber em casa vinho do Maçanita e com isso contribuir com 50% dos lucros para apoiar a Cruz Vermelha Portuguesa, partilhar necessidades nas idas ao supermercado do bairro com os vizinhos do prédio no grupo do WhatsApp, etc. Os exemplos são tantos e tão variados que seria impossível identificar todas as possibilidades criadas em tão curto espaço de tempo.

Mas o que realmente importa reter é a utilização da tecnologia, muitas vezes apontada como destruidora de relações físicas, de forma criativa e humana na construção de comunidades de proximidade, de redes de confiança e partilha, permitindo ainda apoiar o comércio de proximidade, os artesãos e as lojas tradicionais.

Agora que progressivamente nos libertamos das restrições do confinamento e paulatinamente reabrem os restaurantes, os cabeleireiros e os barbeiros, a que se seguirão as grandes lojas e armazéns, os hipermercados e os centros comerciais, saibamos conciliar os nossos hábitos de vida e padrões de consumo de forma a não comprometer estes novos “bairros” que ainda agora começamos a construir e apoiar a economia de base local.

Este poderá ser o mais importante resultado das dificuldades que atravessámos, pois o poder de cada um de nós, se exercido coletivamente, pode mudar o mundo.

Este é o desafio que lanço a cada um: ser ator da construção do “Meu Bairro”, dar passos efetivos na mudança da economia linear para a economia circular, através do reforço da partilha de bens e serviços na sua comunidade. Recorra ao comércio de proximidade, apoiando a economia local e reduzindo assim as emissões diretas e indiretas de gases com efeito de estufa. Seja parte do imperioso processo de descarbonização e da resposta à emergência climática, fazendo das consequências da pandemia um contributo para a sustentabilidade do seu bairro (e do mundo). Também com o apoio da tecnologia.

Miguel de Castro Neto
Público | 20 de maio de 2020
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